A era dos transplantes de fígado em seres humanos é recente, iniciou há cerca de 30 anos, através do pioneirismo de T. E. Starzl. Após aperfeiçoar as técnicas do transplante ortotópico de fígado em cães, Starzl realizou o primeiro transplante de fígado humano em 19631. Tratava-se de uma criança de 3 anos com atresia biliar que faleceu, de hemorragia, no pós-operatório imediato. Até a década de 1970 o número de transplantes hepáticos era inferior a duzentos e a sobrevida era de apenas 20% em 2 anos2. A introdução na prática clínica da droga Ciclosporina, por R. Calne3, modificou a perspectiva dos transplantes e possibilitou uma sobrevida muito maior. A partir daí, pouco a pouco, o transplante de fígado, passou a ser um procedimento regular, quase rotineiro, nos grandes centros médicos.
Há, em relação aos transplantes, dois princípios básicos. O primeiro é de natureza social: sem doador não há transplante. O segundo é estritamente médico: o transplante não inicia nem termina na cirurgia. Transplantar não é, evidentemente, apenas operar4. É um complexo conjunto de medidas, associando conhecimentos teóricos, técnicas cirúrgicas inovadoras e avançada tecnologia, que permitem que órgãos e/ou tecidos sejam removidos de uma pessoa e transferidos, com êxito, para outra. Trata-se, sem dúvida, de um dos mais desafiadores procedimentos terapêuticos. Em virtude de sua extrema complexidade, requer o esforço e a dedicação de um grande número de profissionais. No centro do processo, envolvidos muito profundamente no atendimento, estarão os integrantes de algumas unidades especiais: o centro cirúrgico, a unidade de tratamento intensivo e o laboratório. No entanto, em um hospital onde são realizados transplantes, não há, na prática, nenhum departamento que possa ficar alheio a essa atividade. A exitosa realização do procedimento abarca várias especialidades médicas e para-médicas. Além disso, as questões e os debates não serão limitados aos aspectos médicos, por mais desafiadores que sejam. Há inúmeras implicações legais, éticas e econômicas. É fundamental que os integrantes das equipes trabalhem com a noção bem clara de que, normalmente, se de um lado os transplantes salvam vidas, do outro lado há tristeza e dor. Na imensa maioria dos casos uma vida foi perdida para que outra permaneça. Sabe-se que há toda uma corrente de eventos necessários para que uma doação se efetive. Basta um elo se romper, e todo o conjunto estará irremediavelmente comprometido. A generosidade e a confiança são os verdadeiros fios condutores deste processo4.
Há cerca de 5 anos iniciamos os preparativos para o THI (Transplante Hepático Infantil) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA)5. Naquela ocasião, fazíamos algumas previsões: a) a demanda de pacientes seria elevada; b) a comunidade responderia positivamente à solicitação de doação de órgãos; c) o THI propiciaria uma ainda maior qualificação de diferentes setores do HCPA através do efeito multiplicador que acarreta. Essas previsões não se constituíram em mero exercício de futurologia e foram amplamente realizadas. Após o primeiro transplante, em março de 1995, o THI foi realizado em 41 pacientes. Atualmente, abril de 2000, o THI já faz parte do cotidiano do HCPA e um número crescente de pacientes está sendo encaminhado de maneira continuada para avaliação. A ampliação do programa, porém, está condicionada ao nú- mero dos doadores, sendo o transplante hepático, em certo aspecto, uma vítima de seu próprio sucesso. As boas taxas de sobrevivência estimulam um número cada vez maior de potenciais receptores. Para enfrentar este desafio, é imprescindível a colaboração dos mais diversos segmentos da sociedade. A colaboração do Serviço Nacional de Transplante do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde e de Educação, tanto dos Municípios quanto dos Estados, é fundamental para ampliar o número de doadores e modificar o atual sistema de alocação de órgãos, permitindo que maior número de crianças possa se beneficiar com os Programas de Transplantes no Brasil.
Podem ser identificadas quatro diferentes fases nos transplantes. São elas: a) a fase pré-transplante; b) o procedimento propriamente dito e o período peri-operatório; c) o retorno à vida funcional; e d) a evolução a longo prazo4. Cada uma com as suas peculiaridades. Neste artigo nós vamos enfocar apenas os aspectos clínicos do transplante hepático na faixa etária pediátrica.
Fase pré-transplante
É neste período que são analisadas as indicações, contra-indicações e a preparação do paciente e de sua família para a cirurgia. Deve ser enfatizada a necessidade da avaliação ser realizada por equipes multi-disciplinares. A correção das anormalidades observadas nessa fase vai contribuir para diminuir tanto as complicações operatórias quanto as do pós-operatório imediato. Avaliação meticulosa das imunizações e do estado nutricional são fundamentais. Muitas vezes são necessárias medidas agressivas de orientação/recuperação nutricional, como sondas para alimentação, gastrostomia, etc. Da maior importância é o momento de inclusão do paciente na lista ativa, o timing do transplante.
Indicações dos transplantes
As principais indicações deste procedimento podem ser agrupadas em quatro grandes categorias: (1) doença hepá- tica primária com evolução progressiva; (2) doença hepática não progressiva de reconhecida morbi-mortalidade; (3) doença metabólica do fígado e (4) insuficiência hepática fulminante (de etiologia conhecida ou desconhecida)6. Há uma distribuição bi-modal no que se refere à idade dos pacientes5. Nos primeiros 2 anos, em geral, são candidatos aqueles com atresia biliar; após essa idade a maioria dos transplantes são feitos em crianças com hepatite fulminante ou com cirroses de outras causas que não a atresia biliar.
A atresia das vias biliares extra-hepáticas (AVBEH) é a maior indicação de transplante hepático na faixa etária pediátrica, respondendo por 76% das indicações das crian- ças abaixo dos 2 anos de idade e por aproximadamente 50% das indicações de uma maneira geral2,7. Apenas cerca de 20% das crianças operadas por atresia biliar não serão candidatas a transplante6. O segundo grupo, em termos de freqüência, é o das doenças metabólicas (20 a 25%) e menos freqüentemente a insuficiência hepática fulminante e outras formas de colestase intra-hepática2,6,7. A doença hepática maligna primária é uma causa rara de indicação de transplante nesta faixa etária, assim como raramente pacientes com hepatopatias secundárias a doenças sistêmicas, tais como fibrose cística, são candidatos a transplante.
Quando colocar o paciente em lista ativa? A decisão de colocar o paciente em lista ativa, o que equivale à possibilidade de realizar o transplante a qualquer momento, às vezes é muito difícil. Devem ser ponderados o risco-benefício do tratamento, a disponibilidade local de órgãos e a probabilidade de evolução do paciente após o transplante. A indicação deve ser feita quando há deterioração progressiva das condições de saúde dos pacientes, mas antes do aparecimento de complicações que determinem risco excessivo com o procedimento2. Nesse contexto, são indicadores da necessidade de realização do transplante:
– colestase, prurido e/ou ascite intratáveis do ponto de vista clínico;
– hipertensão porta com sangramento de varizes sem resposta ao tratamento;
– episódios múltiplos de colangite;
– síntese hepática progressivamente deficiente (coagulopatia, hipoalbuminemia);
– repercussão no crescimento estato-ponderal;
– encefalopatia hepática (graus I,II,III).
Contra-indicações dos transplantes
A lista de contra-indicações é inversamente proporcional à experiência adquirida com o procedimento. Nas Tabelas 2 e 3 estão apresentadas as principais contraindicações absolutas e relativas de transplante hepático pediátrico6,8,9. A avaliação social, sobretudo no nosso meio, é de extraordinário valor10,11. Em algumas séries as taxas de não-adesão dos pacientes às orientações dadas pelas equipes de transplante alcançam cifras de até 50%. As repercussões negativas na evolução dos pacientes daí decorrentes são óbvias, com perdas dos enxertos, rejeição e reações adversas aos medicamentos em altas percentagens. Podem ser considerados fatores de risco para não-adesão:
– baixo nível socioeconômico e de compreensão;
– esquema terapêutico particularmente complexo, com grande número de medicamentos;
– paciente morar muito distante do centro transplantador;
– família desestruturada e com insuficiente suporte de assistência social.
Avaliação dos candidatos a transplante hepático
A avaliação pré-transplante tem como objetivos principais:
– a confirmação diagnóstica e da necessidade de transplante;
– o estabelecimento da gravidade da doença;
– o reconhecimento de potenciais contra-indicações ao transplante;
– o tratamento e a profilaxia de situações desfavoráveis à boa evolução do transplante (vacinação, tratamento de infecções, suporte nutricional, suporte psicossocial);
– a educação de pacientes e familiares no que se refere aos cuidados pré- e pós-transplante;
– o entrosamento entre os pacientes, seus familiares e a equipe de transplante.
Deve-se lembrar que, para lactentes com atresia biliar, um dos mais importantes fatores preditivos de complica- ções, no período pós-transplante, é a desnutrição protéicoenergética. Em realidade, crianças mal nutridas, de qualquer idade, apresentam um número maior de complicações em comparação àquelas bem nutridas. As taxas de mortalidade são duas vezes maiores nas primeiras. Estudo recente com análise multivariada identificou um nível baixo de fator V (< 34%) como elemento de previsão independente da sobrevida em pacientes com cirrose, apontando 93% daqueles cirróticos que morreram em 10 meses. Uma avaliação que freqüentemente é utilizada para crian- ças hepatopatas, com colestase, é o escore de Malatack15, que analisa dados clínico-laboratoriais e identifica três diferentes categorias de pacientes: os de baixo risco, médio risco e alto risco de morte nos próximos 6 meses (Tabela 4).
Investigação laboratorial do candidato a transplante
A investigação laboratorial inclui uma ampla gama de exames laboratoriais – bioquímicos, hematológicos, imunológicos, radiológicos, etc. Consideramos indispensável, além de colher material para os exames citados acima, armazenar material (pelo menos uma alíquota de sangue), em freezer, para a soroteca do serviço.
– Avaliações especializadas: de acordo com a individualização dos casos, serão solicitadas avaliações médicas especializadas: cardiológica, nefrológica, neurológica, pneumológica, anestésica, psiquiátrica, odontológica, nutricional, otorrinolaringológica, genética e qualquer outra que seja necessária. A representante do serviço social fará a avaliação socioeconômica11. As avaliações nefrológicas, pneumológicas e cardiológicas são fundamentais quando há comprometimento da função renal e síndrome hepatopulmonar.
– Avaliação e orientação nutricional: a grande maioria das crianças e dos adolescentes com hepatopatia crônica apresenta desnutrição e deficiências de vitaminas e minerais12,13. Sabe-se que as boas condições nutricionais apresentadas pelos pacientes ao serem transplantados facilitam a recuperação no pós-operatório. Por outro lado, quando há comprometimento do estado de nutrição, há evidente repercussão sobre o número e a intensidade das complicações após a cirurgia12,13. No nosso material, cerca de 65% das crianças com atresia biliar apresentava depleção de gordura, e, em um número ainda mais significativo, houve inadequação da dieta evidenciada por inquérito alimentar4,5. Quando as crianças com colestase crônica, candidatas a transplante, foram avaliadas por densitometria óssea, a proporção de alteração foi muito alta:100%16. Para a avaliação nutricional (Figuras 1 e 2) utilizamos os seguintes itens:
– antropometria;
– velocidade de crescimento;
– idade óssea, densitometria óssea;
– desenvolvimento puberal;
– manifestações de hipovitaminose;
– inquérito alimentar.
Considerando a importância da nutrição na evolução dos transplantes, somos partidárias de suplementação intensiva, mesmo que, para isso, às vezes, sejam necessários métodos algo agressivos. Em pacientes com intensa anorexia utilizamos sondas naso-gástricas, naso-enterais, ou mesmo gastrostomias (com o dispositivo em forma “de botão”). Para calcular a reposição calórica utilizamos o percentil 50 para peso e estatura e adicionamos polímeros de glicose e triglicerídios de cadeia média. O quadro a seguir fornece a base dos nossos cálculos.
Imunizações Recomenda-se que os pacientes pediátricos façam todas as vacinas antes do transplante. As vacinas de vírus vivos não podem ser feitas após o transplante, portanto, torna-se fundamental que sejam aplicadas antes da cirurgia. É importante assegurar que as vacinas do calendário vacinal de rotina estejam em dia, e são recomendadas todas as outras vacinas antes da cirurgia. Em crianças acima dos 6 meses indicam-se as vacinas contra sarampo, contra rubé- ola, contra varicela, assim como as vacinas anti-hemófilose anti-pneumoccócica7. As vacinas contra as hepatites A e B devem ser realizadas também antes do procedimento. Quando o paciente submete-se a vacina com vírus vivos, deve-se aguardar aproximadamente 1 mês para que essa criança possa ser transplantada, devido à imunossupressão que ela irá receber já no transoperatório.
Fase pós-transplante
Pós-operatório precoce Nos primeiros dias pós-transplante o paciente fica internado na UTI, sendo visto e monitorizado pelos intensivistas e acompanhado pelo hepatologista. Embora existam alguns pacientes que já apresentam condições de extubação no bloco cirúrgico, é aconselhável a estabilização e manutenção da criança nas primeiras 24-48 horas na UTI, quando então pode-se comprovar que a função hepática é satisfatória, assim como os fluxos sanguíneos na artéria hepática e na veia porta, através de exames laboratoriais e ultrasonografia com doppler. O procedimento cirúrgico é muito extenso e as incisões abdominais são grandes e dolorosas, fazendo com que o paciente necessite analgésicos e sedativos em doses apreciáveis, o que torna a monitorização bastante delicada. O manejo hemodinâmico, assim como o renal são especialmente importantes e complexos nas primeiras horas do pós-operatório do transplante de fígado.
As complicações que ocorrem no período pós-operató- rio precoce dependem: – da condição prévia do receptor (estado nutricional, infecções, ascite, insuficiência renal, encefalopatia); – da qualidade do enxerto (tempo de isquemia, preserva- ção); – das complicações cirúrgicas (sangramentos, instabilidade hemodinâmica no transoperatório); – dos efeitos secundários das drogas (insuficiência renal, infecções). As principais causas de perda do enxerto na primeira semana são: – não funcionamento primário do fígado; – trombose da artéria hepática ou da veia porta; – septicemia. O não funcionamento primário do fígado é uma complicação muito séria, que ocorre nos transplantes hepáticos em crianças de acordo com os diferentes centros e que requer o retransplante imediato18-20. Suspeita-se dessa condição quando há coagulopatia persistente, acidose, hipercalemia e transaminases progressivamente elevadas (acima de 10.000 UI/l)7. A trombose da artéria hepática pode ocorrer em até 10% dos casos, mas vem diminuindo de incidência graças à técnica de microcirurgia utilizada na reconstrução da arté- ria, e ao uso de enxertos reduzidos com vasos mais calibrosos. A trombose da veia porta é menos comum.
A septicemia é tratada com antibióticos sistêmicos,assim como com antifúngicos, principalmente nos casos de hepatite fulminante. Rotineiramente, os antibióticos de amplo espectro são iniciados profilaticamente durante o transoperatório e continuados ou não nas primeiras 48-72 horas de acordo com cada paciente. Em nosso programa utilizamos Aztreonam e Vancomicina.
Imunossupressão
Os esquemas mais usados para imunossupressão após otransplante de fígado são os seguintes:
1. Ciclosporina (microemulsão – Neoral), Prednisona e Azatioprina;
2. Tacrolimus (Prograf) e Prednisona.
Um dos dois imunossupressores de base (Ciclosporina ou Tacrolimus) é iniciado no primeiro ou no segundo dia pós-operatório (geralmente por sonda naso-gástrica ou enteral), de acordo com a função renal, ou seja, quando o débito urinário for pelo menos de 1 ml/kg/hora, e deve ser mantido por toda a vida do paciente. As doses são variáveis de acordo com a monitorização dos níveis séricos e seguem a protocolos bem estabelecidos (Tabelas 6,7,8 e 9).
Os esteróides são reduzidos progressivamente e, em geral, interrompidos aos 3 meses ou no final do primeiro ano, ou são mantidos em doses bem baixas, de acordo com os diferentes protocolos. A diminuição e retirada dos corticoesteróides é mais rápida com o uso de Tacrolimus, o que é particularmente importante na faixa etária pediátrica, devido aos seus efeitos no crescimento.
A Azatioprina, quando usada, é descontinuada após 3 meses ou após 1 ano. Atualmente, utiliza-se também o Micofenolato Mofetil, outra droga imunossupressora, de uso ainda limitado em crianças21.
Complicações após a primeira semana
Depois da primeira semana pós-transplante, as complicações mais freqüentes são:
– septicemia / infecção;
– rejeição;
– estenoses ou fístulas biliares.
A infecção é a complicação mais comum após o transplante de fígado, ocorrendo em 60 a 70% dos casos. Em nossa casuística, a infecção bacteriana comprovada ocorreu em 70% dos pacientes transplantados nos primeiros 30 dias após a cirurgia. Os germes mais freqüentemente identificados foram Staphylococus aureus e epidermidis e Xantomonas maltophilia. A maioria das infecções é bacteriana e principalmente decorrente dos acessos venosos, pulmonares e urinários. Infecções fúngicas ocorrem em 10 % das crianças, sendo essas particularmente importantes quando há necrose hepática aguda no pré-transplante. Nos nossos pacientes a infecção fúngica ocorreu em 10% e Cândida foi o organismo mais comum22.
Rejeição
A rejeição aguda é menos comum nos lactentes (20%), mas aumenta bastante nas crianças maiores (50-60%). Os sinais clínicos de rejeição podem ser muito variados, incluindo febre, dor abdominal, irritabilidade. Laboratorialmente há aumento das provas de função hepática (transaminases, bilirrubinas, GGT e fosfatase alcalina). O diagnóstico é histológico, tornando então a biópsia de fígado indispensável. A rejeição aguda caracteriza-se pela tríade: infiltrado inflamatório misto nos espaços porta, infiltração linfóide subendotelial (endotelite) e presença de células inflamatórias nos ductos biliares. O tratamento da rejeição consiste em pulsoterapia com corticóides ou adição de outras drogas imunossupressoras. Se não há remissão laboratorial e histopatológica após o pulso de metilprednisolona, pode-se repetir o curso por mais 3 dias, mas a conversão para um imunossupressor mais potente, como Tacrolimus, pode ser necessária.
A rejeição crônica é bem mais rara, sendo que ocorre em aproximadamente 10% das crianças transplantadas, em qualquer momento após a cirurgia. O diagnóstico, que também é histológico, é sugerido por um quadro de obstrução biliar, com aparecimento de icterícia, prurido e hipocolia. Laboratorialmente há um aumento maior das bilirrubinas, GGT e fosfatase alcalina do que das transaminases. A biópsia demonstra desaparecimento progressivo dos ductos biliares, acompanhando obliteração nas artérias e fibrose. Algumas crianças respondem ao aumento da imunossupressão ou resgate com Tacrolimus. Mas a maioria necessita de um retransplante.
As complicações consideradas tardias, ou seja, que ocorrem após as três primeiras semanas do transplante, podem acontecer em qualquer momento e incluem:
– efeitos colaterais da imunossupressão;
– infecções virais (CMV e EBV);
– doença linfoproliferativa (PTLD);
– estenoses biliares e tromboses tardias.
Existem numerosos efeitos secundários da medicação imunossupressora, que devem ser sempre lembrados e manejados adequadamente. Na Tabela 10 mostramos os mais comuns. O hirsutismo e a hiperplasia gengival, que são efeitos puramente cosméticos, mas que podem atrapalhar bastante a vida do paciente, principalmente do adolescente, não são efeitos colaterais do Tacrolimus, mas somente da Ciclosporina. Os outros efeitos secundários mais sérios (nefrotoxicidade, neurotoxicidade) são muito semelhantes quando utilizamos a Ciclosporina ou o Tacrolimus. Devese ter sempre em conta que os efeitos colaterais das drogas podem ser potencializados por outras drogas que interferem com seus níveis séricos.
Na Tabela 11 estão listados alguns medicamentos capazes de interferir com os níveis séricos de Ciclosporina.
As infecções virais por CMV e EBV são muito mais freqüentes nos receptores pediátricos, refletindo o menor número de pacientes com anticorpos positivos antes do transplante. As infecções por CMV ocorrem a partir da 4ª semana, mesmo quando se faz profilaxia com Aciclovir ou com Ganciclovir no pós-operatório. O risco de doença por CMV é maior quando a criança é negativa e recebe um órgão positivo. O tratamento, quando iniciado precocemente, geralmente é eficaz e é realizado com Ganciclovir EV de 2 a 4 semanas, com doses de 5mg/kg/dose de 12 em 12 horas.
O desenvolvimento de infecção primária por EBV é um problema significativo a longo prazo, pois há uma relação estreita entre a infecção primária por EBV e a Doença Linfoproliferativa Pós-Transplante (PTLD)25,26. Aproximadamente 65% das crianças que vão a transplante são EBV-negativas e 75% desse grupo vai ter infecção primária por EBV no período dos primeiros 6 meses de pós-operatório7. Desordens associadas ao EBV ocorrem em 13% a 57% dos receptores de transplante hepático pediátrico, acarretando problemas significativos de morbi- e mortalidade26. É importante diagnosticar infecção primária por EBV e diminuir a imunossupressão sempre que possível para tentar impedir a progressão desse paciente para PTLD26. O espectro da proliferação de células B é muito amplo e pode ir desde uma hiperplasia benigna até o linfoma maligno. Qualquer órgão ou tecido pode apresentar essa proliferação linfocitária, desencadeada por infecção primária por EBV, dificultando muitas vezes o diagnóstico. Os órgãos mais comumente atingidos são o fígado, o intestino e os tecidos linfóides da cabeça e do pescoço7,16,19,25. Os achados clínicos podem ser extremamente variáveis, dependendo do estágio e do órgão atingido, podendo ir desde uma síndrome clínica tipo mononucleose infecciosa ou envolvimento linfóide isolado até o linfoma. O diagnóstico é baseado na histologia característica do órgão atingido, que pode demonstrar proliferação polimórfica de células B ou achados linfomatosos de atipia nuclear e necrose. A imunofluorescência das imunoglobulinas de cadeias leves ou pesadas pode diferenciar os infiltrados em mono ou policlonais. A PTLD parece ser causada pelo uso inapropriadamente alto dos imunossupressores e não, como se pensava previamente, que a incidência era maior com o Tacrolimus7,26. O tratamento é a redução ou retirada da imunossupressão e drogas antivirais (Aciclovir ou Ganciclovir). Se há aparecimento de linfoma, a quimioterapia pode ser necessária. A dificuldade maior é o balanço entre diminui- ção da imunossupressão e o aparecimento de rejeição, que necessita ser tratada com mais imunossupressão.
As estenoses biliares tardias são usualmente devido a problemas na Artéria Hepática e, dentro do possível, devem ser tratadas radiologicamente. Se não tratadas adequadamente, evoluem para colangites e cirrose biliar. A trombose hepática tardia geralmente não requer tratamento, pois um fluxo colateral se estabelece. Estenose da Veia Porta, devido a estenose da anastomose, deve ser tratada radiologicamente ou por reconstrução cirúrgica, porque evolui para hipertensão porta.
Evolução a longo prazo A sobrevida a longo prazo após o transplante hepático é variável nos diversos centros, mas pode alcançar 90% no primeiro ano pós-transplante e taxas de 60 a 80% nos próximos 5 a 8 anos
. Os principais fatores que afetam a sobrevida após o transplante são:
– idade (crianças menores de 1 ano apresentam uma sobrevida menor);
– estado nutricional;
– severidade da doença no pré-operatório.
As crianças que passam os primeiros 3 meses após o transplante sem complicações maiores são aquelas que rapidamente retomam uma vida normal, com atividades habituais para a faixa etária, apesar de receberem medicação imunossupressora por toda a vida e de serem submetidas a monitorizações periódicas. Existem alguns estudos indicando que até 59% das crianças transplantadas não retomam o crescimento. Estudos mais recentes, entretanto, têm demonstrado que a maioria dos pacientes (80%) vão crescer e se desenvolver normalment. O retardo no crescimento parece estar diretamente relacionado com o uso de esteróides, que vem diminuindo com o uso de Tacrolimus. As crianças podem apresentar inicialmente um excessivo ganho de peso decorrente das altas doses de esteróides, aumento do apetite e retenção de sal e água. Em geral, os pacientes vão retomar o crescimento linear após 1 ano.
Monitorização ambulatorial
Os pacientes, quando recebem alta do hospital, são vistos freqüentemente, em intervalos semanais no início e, posteriormente, a cada 15 dias, a cada mês, a cada 3 meses e a cada 6 meses. Cada vez que eles consultam, são colhidos controles laboratoriais, níveis séricos dos imunossupressores e ajustados os medicamentos.
É essencial encorajar a criança e a família a retornar às atividades e à vida normal. Após decorridos 6 meses do transplante, o paciente deve voltar à escola, aos esportes e à vida de relação com outras crianças, e a família deve, aos poucos, parar de tratá-la como uma criança doente. Muitas famílias têm dificuldades para ultrapassar esse período e necessitam apoio e acompanhamento pscológico.
O primeiro transplante ortotópico de fígado foi realizado em uma criança. Desde essa data, avanços contínuos têm sido feitos nas técnicas cirúrgicas, na preservação dos órgãos, nos cuidados pós-operatórios e nos métodos de imunossupressão: o transplante tonou-se uma terapia eficaz, largamente aceita e utilizada para crianças com doen- ças hepáticas terminais.
O transplante de fígado melhorou dramaticamente a sobrevida de pacientes pediátricos com hepatopatias crônicas. Pacientes na faixa etária pediátrica que são submetidos a transplante hepático podem apresentar, hoje, taxas de sobrevida que chegam a 90% nos diferentes centros. Como as taxas de sobrevida pós-transplante melhoraram progressivamente, o objetivo médico final é a reabilitação completa dessas crianças transplantadas. Fatores que contribuem para alcançar esse objetivo incluem melhorar o estado nutricional com crescimento e desenvolvimento apropriados, assim como permitir melhora nas capacidades motoras e cognitivas dos pacientes, permitindo a sua total reintegração social.
Fonte: www.doencasdofigado.com.br